O bitcoin nasceu como uma moeda virtual libertária, com a promessa de subverter o sistema financeiro global. Oito anos depois, a invenção segue sendo uma curiosidade obscura, enquanto instituições financeiras, empresas de pagamento e bancos centrais — isto é, os “inimigos” originais do bitcoin — fazem uma corrida para capturar a tecnologia por trás da criptomoeda. Eles estão de olho no blockchain, um modelo de rede virtual que permite que as transações financeiras aconteçam sem a necessidade de intermediários para validá-las.
Os bancos veem na tecnologia uma oportunidade para reduzir custo, cortar intermediários e oferecer novos serviços. Para bancos centrais como o da Inglaterra e o da China, a tecnologia é um mecanismo importante para redução de fraudes e rastreamento de transações.
O bitcoin é muito diferente do padrão dos bancos. Quando uma pessoa transfere dinheiro para outra hoje, são os bancos que aprovam a transação, checando se o remetente tem aquele montante e se o destinatário possui uma conta para recebê-lo. No caso do bitcoin, não é nenhum banco que aprova a transação, mas os próprios “correntistas”. Por se tratar de uma moeda virtual, os usuários estão conectados por meio de computadores.
Quando alguém envia bitcoins para outro usuário, um código digital é gerado. Nessa hora, os computadores de todos os usuários de bitcoin no mundo começam uma corrida para decifrar aquele código e dizer se ele é válido. Depois disso, o código é acrescentado a um arquivo com o registro de todas as transações já feitas em bitcoin. Os computadores de todos os usuários têm uma cópia desse arquivo, e ele é usado como referência para validar as transações futuras.
Por trás de toda essa engenharia está o blockchain, e é graças a ele que o bitcoin consegue viabilizar transações confiáveis, sem a necessidade de instituições verificadoras, mesmo estando fora do alcance de órgãos reguladores. Ao eliminar intermediários, ele permite o corte de custos; por usar toda a rede para confirmar as transações e um arquivo com o registro de todas elas, ele dificulta fraudes.
Paschoal Baptista, sócio da DeLoitte, resume em quatro pontos o interesse do sistema financeiro no blockchain: reduzir custo, diminuir a intermediação, oferecer novos serviços e melhorar a capacidade dos serviços atuais. No caso dos bancos centrais, ele afirma que o objetivo principal é facilitar o processo de auditoria.
— No blockchain, não se pode mexer no registro das transações. Isso permite uma auditoria muito mais rápida e completa. Logo, ele é menos suscetível a fraude e erros — disse. — Até um processo como a apuração do Imposto de Renda pela Receita ficaria muito mais simples, por exemplo.
O Fórum Econômico Mundial está convencido de que será uma peça-chave do sistema financeiro global. Segundo o fórum, mais de US$ 1,4 bilhão já foi investido na tecnologia nos últimos três anos, e 80% dos bancos do planeta devem iniciar projetos com ela em 2017. Já são também mais de 90 bancos centrais discutindo a tecnologia.
A consultoria McKinsey, por sua vez, calcula que o investimento de venture capital em blockchain foi de US$ 600 milhões entre o fim de 2014 e o terceiro trimestre de 2015. Só os bancos devem investir US$ 400 milhões no ano de 2019 contra US$ 39 milhões em 2014. Os executivos esperam impacto significativo dentro de cinco anos. Nos segmentos de pagamentos e mercados de capitais, o impacto previsto é de até US$ 85 bilhões.
Três instituições brasileiras entraram este ano para o R3, um consórcio privado com mais de 45 instituições financeiras (incluindo gigantes como JPMorgan Chase, Barclays e Wells Fargo) que trabalha no desenvolvimento de aplicações práticas do blockchain. As brasileiras são Bradesco, Itaú Unibanco e BM&FBovespa. Em fevereiro, o grupo informou ter obtido sucesso em um teste de negociação de ativos digitais em uma rede privada que passava por quatro continentes.
A BM&FBovespa criou um grupo com 16 profissionais de várias diretorias para entender os diversos padrões de blockchain que estão surgindo. Um deles é o Etherium, que possui uma moeda virtual pública que se apresenta como uma alternativa ao blockchain. Por trás dela está a firma de venture capital DAO, e o sistema acabou sendo abalado após recente ataque hacker. Outro modelo emergente é o Corda, desenvolvido pelo R3.
— No modelo do bitcoin, todos os integrantes da rede têm uma cópia completa do registro, embora todas elas sejam criptografadas e não dê para saber a identidade por trás da transação. No mercado de capitais, porém, tem havido uma resistência à possibilidade de todos os participantes terem uma cópia completa desse arquivo — explicou Jochen Mielke de Lima, diretor de Sistemas de negociação da BM&FBovespa.
Essa é a grande questão sobre o uso do blockchain no sistema financeiro. Em Wall Street, proteger informações da concorrência é o segredo do negócio. Assim, o que as instituições financeiras buscam é um sistema em que apenas os dados estritamente necessários sejam compartilhados. Como definiu Lima, um blockchain em que os registros contenham apenas as informações públicas de cada transação (como a assinatura criptográfica que a garante), mas sem detalhes como quem pagou o quê a quem.
Esse é um dos objetivos do Corda. Seu site se gaba do fato de a tecnologia “não ter o desnecessário compartilhamento de dados”, afirmando que apenas as partes interessadas terão acesso às informações. Nele, a validação das transações também é feita por um número restrito de participantes — ou seja, o sistema de consenso é diferente do do bitcoin.
Além de utilizar modelos diferentes do bitcoin, o blockchain dos bancos também deve se desdobrar em várias redes, cada uma dedicada a um tipo de serviço, segundo Rony Sakuragui, gerente de Pesquisa e Inovação do Bradesco. Como as regras de cada serviço são muito diversas, pode haver um blockchain apenas para tratar de remessas internacionais, outro para o sistema de pagamentos, e assim por diante.
O Bradesco vem pesquisando o uso do blockchain para prevenção a fraudes. Segundo Sakuragui, a tecnologia permite um compartilhamento mais eficiente de informações sobre irregularidades entre os bancos. A transferência de recursos internacionais é outro ponto de interesse.
— Por meio do sistema Swift (Sociedade de Telecomunicações Financeiras Interbancárias Mundiais, na sigla em inglês) que se usa hoje, para você fazer uma remessa internacional para um país da Ásia que não tem relacionamento com esse banco, o sistema recorre a bancos intermediários para chegar até ele. Mas você paga um pedágio, e pode ser que a transação não se complete porque o destinatário está, por exemplo, em uma lista negra. Com o blockchain, você chega diretamente àquele banco e tem a confiança de que a transação vai terminar — afirmou Sakuragui. — As contas não estão fechadas. Não dá para responder se sai mesmo mais barato. Mas existe a expectativa de que sim.
O Santander lançou no primeiro semestre do ano passado no Reino Unido um aplicativo em parceria com a fintech Ripple para fazer remessas internacionais por meio de blockchain. Os usuários são funcionários do banco que podem fazer remessas de euro para dólar ou de libra para euro por meio do celular, usando as plataformas da Ripple, Apple Pay e Elavon.
— Aqui no Brasil, temos alguns trabalhos de pilotagem e vamos promover um hackathon (maratona de programação) cujo tema será pagamento e criptomoedas, em São Paulo — disse Richard Flávio da Silva, superintendente executivo de Tecnologia do Santander Brasil.
O Banco Central brasileiro formou em junho um grupo de trabalho para discutir a tecnologia.
— O que vemos é uma tecnologia que pode representar simplificação de processos, redução de custo e até “desintermediação”. Mas, em termos concretos, ainda não avançamos muito. O que a área de tecnologia do BC tem feito são alguns trabalhos para entender a tecnologia, como provas de conceito testadas em ambiente controlado — disse Paula Ester Leitão, chefe adjunta do Departamento de Regulação do Sistema Financeiro do BC. — É incipiente, mas existe muita expectativa de que se trata de uma tecnologia com potencial grande.
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